terça-feira, 16 de agosto de 2016

Eles sempre souberam.

  Você está quase sozinha.
  É, você sabe, é pelo 'quase' que você ainda não desistiu. Mas você sabe quem não foi inocente. Eles sabiam de tudo desde o início.

  Eles souberam quando ele disse que separava mulher de casar pra se divertir. Mas sabe como é, né? Foi uma vez só. A sociedade faz os meninos pensarem assim e, até então, eles também são vítima disso.
Mas eles também souberam das pequenas mentiras que ele contava. Ele também disse que a ex contou pra mãe dele sobre coisas pessoais suas, pra te ferrar. Mas você sabe quem contou sobre você, não sabe?

  Você sabe o que fez a mãe dele odiá-la, não sabe?

  Eles souberam desde o início que o ciúmes dele não era normal. Eles souberam também que a forma que ele te tratava não era aceitável. Não pra você. Mas talvez desde esse momento eles já nem ligavam tanto. Ele cortava sua fala na roda da conversa, ele brincava com suas características físicas e intelectuais. Mas eram só brincadeiras. Ninguém nunca achou anormal. Eles souberam quando ele começou a te xingar. A te chamar de burra, lixo, doente e louca. Claro, louca não poderia faltar. Continuaram todos achando normal. Ou um leve espanto, mas nada demais. 

     Ninguém deixava sequer de nutrir amor ou carinho por ele.

  Eles souberam sobre aquele carnaval. Eles sabem tim-tim por tim-tim o que aconteceu. Você saiu pra conversar com suas amigas de infância e, não muito depois, ele invadiu a roda e te puxou pelo braço, te chamando de vadia. Eles souberam disso também. Mas você sabe, os amigos dele o amavam demais e não queriam acreditar que esse era o cara que eles conheceram no Ensino Médio. Ele chorou, disse que se arrependeu e, bem, é claro que você deu uma chance. As pessoas erram, não erram? Tudo bem se ele te fez voltar chorando pra casa e lá você é quem terminou enxugando o choro dele. Você o amava, afinal. Assim como os amigos dele o amavam também. O amavam tanto que era inaceitável que você tivesse ficado com alguém quando vocês tinham terminado. Foi aí, por raiva, que ele disse coisas suas pra quem não interessava. Você sabe que não foi a ex dele. Mas você sabe, não é? Você não pode ter liberdade sexual ou afetiva mesmo depois do término. Não em paz.

  Mas ele te amava demais, ele dizia tanto isso. Você o viu chorar por inúmeras vezes depois de todos os erros que ele cometia, porque ele não queria te perder. Ele iria mudar. Mesmo que você soubesse que ele mudaria até o próximo erro. E eles sabiam de todos esses erros. Mais mentiras. Ele te empurrou. Seu braço amanheceu com um roxo. Você chorava de dor e incompreensão dos familiares e dos amigos. E ele chorava de arrependimento porque não queria te perder. Ele te colocou contra seus amigos, te afastou de pessoas. Mas vocês ficaram bem. 

       Ninguém deixava sequer de nutrir amor ou carinho por ele. 

  Ele te lembrou das histórias boas que viveram, do Museu da Imagem e do Som, naquela exposição do Castelo-Rá-Tim-Bum que vocês tanto quiseram ir: e foram. E ele te fez sentir que você tinha do lado alguém especial pra esperar em uma fila quilométrica desde às quatro da manhã pra comprar os ingressos. E por aguentar suas crises de choro e ansiedade. Te lembrou dos planos realizados e dos muitos que ainda tinham de realizar. Da maratona de filmes e dos planos dele de ir trabalhar fora com o seu apoio. Hoje você nem sabe mais se essa história de trabalhar fora era verdade, não é? Quantas mais mentiras ele disse para as outras pessoas?

  Mas você não acreditava que as pessoas poderiam desconfiar tanto de você. Não poderia existir uma forma de desconfiarem de algo que viram, que sentiram, da situação em que você estava. Mas quando as coisas estavam difíceis, ele estava lá. Ele rezava o terço com a família. E ele dizia que torcia e rezava sempre por você.

    Assim ninguém deixava sequer de nutrir amor ou carinho por ele. 

 Ele te deu uma cruz de Tau que a tia dele havia levado para Aparecida do Norte, lembra? Ele dizia ser muito apegado àquela cruz. Dizia que lhe trazia proteção e que havia te dado pra que estivesse sempre protegida. Mal sabia você…
E você deu pra ele aquela cruz da Jornada Mundial da Juventude, de quando você foi pro Rio de Janeiro e que ele quebrou sem querer em um dia chuvoso. Ele estava do seu lado. Ele demonstrava tanto.

  Então houve um dia que ele queria ir à missa, e vocês foram. Há muito tempo vocês não faziam isso. E bem… Quando chegaram você estava com fome. E imaginou que ele também estivesse. Perguntou à ele centena de vezes se ele queria comer algo. Todas as vezes ignorada. Você não entendeu o comportamento. Ele começou a ordenar que você fosse ao quarto e, mais uma vez, você não entendeu. E por não obedecê-lo, ele pegou o controle da sua mão. Eles souberam disso. Todos souberam. Os amigos que o amavam, eles souberam. Depois de pegar o controle da sua mão à força, ele te machucou. Ele te empurrou. Repetiu inúmeras vezes o quanto você era louca, um lixo, uma doente. Eles souberam disso. Todos souberam o que ele fez. E então ele te bateu no rosto. Te prendeu contra a parede. Todos eles souberam. Eles souberam que o seu irmão te ajudou porque você não tinha força física. Foi seu irmão quem tirou ele de cima de você. E todos eles souberam. Os seus amigos, que também eram amigos dele, e que o amavam tanto. Eles souberam que naquela mesma noite ele mentiu pra você e pra mãe dele sobre onde ele havia ido. Eles souberam que você teve de ficar com ele no mesmo apartamento porque sua mãe ficou preocupada – com ele, caso ele ficasse na rua sozinho. Eles souberam que depois disso você ligou pra mãe dele desesperada, esperando algum apoio ou empatia. E eles sabem que você ouviu da mãe dele que esse relacionamento não iria dar certo por sua culpa – e não por ele ser abusivo e ter acabado de te bater. Todos souberam. Souberam que ele continuou te xingando. Mas ele se arrependeu depois.

   Então ninguém deixava sequer de nutrir amor ou carinho por ele. 

  Você tentou manter distância, mas ele foi atrás de você. Ele chorou de novo. E mais e mais vezes ele te maltratou. Mas ele prometeu mudar, e você sentiu alguma diferença. Aconteceram outras coisas, outras mentiras. Você o bloqueou em tudo porque machucou demais, não é? À essa altura você estava ciente sobre onde tinha se metido. Todos eles também sabiam. Eles viram a sua situação. Eles viram seus remédios, suas insônias, os seus medos. Mas ele só tinha uma forma de te encontrar e poder te convencer de novo: Indo ao seu trabalho. E ele foi. Ele sabia exatamente seu horário. Apareceu por lá chorando, te abraçava e te implorava por uma conversa. Lá estava você de novo. Ele disse que te ajudaria com suas crises, que não mentiria mais. E você se tornou abusiva porque não tinha mais confiança, você queria saber de tudo o que ele fazia, a todo momento, invadindo a privacidade dele e você se culpava por isso. Mas você tinha que fazer, porque ele já havia te feito muito mal, mas você precisava dele porque foi assim que ele fez você acreditar. E todos, todos eles sabiam disso. Todos os que importavam. E ficou tudo bem, se é que você pode chamar assim. Você se sentia mal todos os dias, porque nada do que ele dizia era possível saber a veracidade. Mas estava o melhor possível.

  Era ele quem segurava suas crises, quem limpava o seu choro, quem dizia que estava ali. E você sabe, você tinha muitas crises. Você precisava dele, só o remédio não dava conta. Mas naquele fim de semana ele disse que não queria estar com você. Ele sabia que você precisava, mas ele não quis. Ele te disse que não tinha compromisso, não era nada demais. Só um tempo pra ele. E então você foi visitar sua amiga na capital, porque precisava de companhia. Só o remédio não dava conta. Todos eles sabiam. Sua amiga te ajudou, te levou pra tomar uma cerveja e você deu satisfação à ele. Ele te disse que não queria ver a namorada dele em bar. Que se continuasse tomando cerveja sozinha vocês teriam que terminar. Eles souberam disso. Ele decretou o fim do relacionamento e – mesmo depois disso – continuou te mandando mensagens exigindo respeito. Eles souberam da mensagem que ele mandou dizendo que era bom você fazer tudo o que ele mandasse, se não você iria se foder. Assim, com essas palavras. E você decidiu que não voltaria nunca mais para essa lama. Sua amiga soube disso. Os amigos em comum de vocês souberam disso. Eles souberam o tempo todo. 

  E você finalmente decidiu interromper esse ciclo. Ele havia terminado e você também terminou isso dentro de si. Eles souberam porque ele perguntou à uma amiga de vocês onde você estava. Você pediu para que não o falasse nada. Mas falaram. Falaram que você estava indo pra casa. E quando você chegou ele estava lá. Te segurou de novo. Estava desesperado como em todas as outras vezes. Entrou na sua casa sem sua permissão e eles souberam disso. Eles souberam porque você avisou para amiga de vocês que ele estava lá e estava tudo indo mal. E ela pediu desculpas. Desculpas…

  Eles souberam sempre de tudo. Ele chorou novamente. Mas você não tinha força para tirá-lo da sua casa, e seus pais não estavam lá. Você ligou para os pais dele, você ligou para a irmã dele. E nada. Ele simulou vômito e todos souberam disso. Ele só queria te convencer outra vez. Mas não, dessa vez você não cederia. Mas você não tinha mais o que fazer, e então eles também souberam que você teve que chamar a polícia. Só então ele foi embora. Eles souberam disso. Você, garota, continuou com os seus remédios. Eles souberam disso. Você foi fundo. E eles souberam também. Eles diziam que estavam do seu lado.


  Por fim, você voltou à sua terapia, você faltou à aulas, você não dormiu por noites e marcou uma nova data com o psiquiatra, os remédios não estão dando conta. Eles ainda não sabem disso. Eles estão ocupados demais pra saber disso e de qualquer outra coisa sua pois foram visitá-lo na casa dele enquanto nenhum deles sequer perguntou sobre você. Mas você não sabe o que ele está dizendo, não é mesmo? Afinal, ninguém deixou de nutrir amor e carinho por ele.


4 comentários:

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  2. Menina, cada palavra doeu em mim porque isso se repete em várias casas. Queria te abraçar e dizer o quanto tu é forte! Beijos

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  3. Eu li esse texto com lágrimas nos olhos, fica bem menina, você não me conhece mas estou enviando energias positivas. Vai ficar tudo bem, você é forte!

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