quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Sábado de Primavera

Era um sábado de outubro, um sábado qualquer de primavera. Não tão qualquer. Depois de presenciar tantos solavancos numa vida quase excluída de eventos motivadores, pude presenciar alguns dias antes eventos alheios daqueles que deixam a primavera mais florida. E, embora eu houvesse presenciado tais alegrias que não me pertenciam, aquele sábado era de certa forma, meu. Meu e de quem eu esperava sempre ver. Marcamos às 18 horas. Minha mania insistente de fazer qualquer coisa arrastando-me – especialmente me arrumar para ir a qualquer lugar – me fez atrasar, e me coloquei no direito de adiar o encontro para as 19 horas. Estava lá às 20.
Talvez tenha parecido que eu não estivesse tão ansiosa assim, ou mesmo que a minha vontade de sair e encontrá-la não eram tanta. Mas a verdade é que tremelicava por dentro e apertava os olhos e os punhos fechados, com o braço esticado, como quem quisera abortar um pouco da ansiedade, só pra não parecer tão vulnerável, e tudo o que consegui foi parecer patética na frente do espelho. Eu não esperava nada daquele dia. Aliás, estava imaginando em como me livrar do desajeito de estar só com ela, sabendo de todos os capítulos que havíamos encenado, de todos os momentos e discussões que deram em absolutamente nada. Ninguém nunca sabe lidar com constrangimentos, ou então não seria chamado assim. Mas só de vê-la, mesmo esperando o pior, mesmo sabendo que tudo se manteria morno demais para mim, era o suficiente pra que eu vencesse um pouco a saudade. Bem pouco, só o suficiente pra respirar tranqüila e fortalecer minha insônia pelas semanas seguintes. Encontrei-a numa praça, em frente àquelas igrejas bonitas que servem de mãe para uns, atraso para outros, mas sempre uma decoração ímpar, digna de ponto turístico para qualquer cidade. Para meu alívio, ela estava de costas para mim – sempre odiei cruzar o olhar com alguém muito antes de chegar até ele, pelo simples motivo de não saber o que fazer e acabar soltando um sorriso de lado, envergonhado, ainda mais na situação em que me encontrava.

- Oi. – Grunhi longo, apertando-a na cintura tentando parecer amigável, esperando a reação que viria daquela menina.
- Oi. Demorou pouco! – Irônica de sempre, levantou pra me dar um abraço.

Foi ali, decerto, um dos nossos abraços mais desajeitados entre todos aqueles dos quais nem lembro a quantidade. Foram muitos, embora não o bastante para mim. Nem chegamos a nos olhar nos olhos. Ela sentou de frente para a porta da igreja, onde acontecia ainda a missa das 18h30, e eu me posicionava paralelamente à estrutura religiosa, olhando vez em quando por minha visão periférica, que a encontrava em primeiro plano e, em segundo plano, a igreja que jubilava em comemoração de aniversário de seu sacerdote residente. Conversávamos sobre coisas vagas enquanto pensávamos coisas completamente diferentes, como as nossas conversas anteriores e os nossos desentendimentos. Ainda estávamos desconsertadas com o encontro. Saímos dali sem direção, acabamos num banco à frente da orla da praia. Um tanto quanto silenciosa, algumas pessoas, e eventualmente apareciam carros ao som de funk como anunciando o começo do sábado agitado que, para nós, não estava tão agitado assim – tirando os hormônios e o calafrio e todas as memórias. Eu estava vestindo um short e dois casacos. Embora a noite estivesse agradável, o vento gelado me dava um frio que não esperava sentir. Mas as coisas quase nunca são como a gente espera, eu deveria saber disso. No embalo de pausas, que já não eram mais tão constrangedoras, de vento e de alguns carros de som passando na avenida, conversávamos sobre bebidas, porres, vodkas ruins e assuntos normais de jovens adultos. Não me lembro de algum momento específico de não querer a presença dela, mas mesmo assim, o tédio era iminente e isso me preocupava. Quero dizer, minha vida ultimamente já estava tão escassa de coisas animadoras, que tudo o que eu menos queria era passar frio na orla da praia sem assunto algum com a pessoa pela qual eu perdia meu sono quase todas as noites. Então propus, como num ato desesperado de salvar a noite, que saíssemos da cidade, que fôssemos pra um barzinho, música ao vivo, conversa, qualquer coisa. E também num ato desesperado recrutei um amigo, que por gentileza do destino não se recusou a nos acompanhar. Não tínhamos onde dormir, onde ficar... Íamos varar a noite, voltar apenas de manhã e, para minha total surpresa, mesmo nessas condições ela aceitou a proposta. Por volta das dez e pouco da noite estávamos esperando o ônibus, sentadas no banco da rodoviária onde uma senhora também aguardava e pedia informação, interagia conosco. Não haviam se passado nem três horas de quando a tinha encontrado, e já tinha perdido a conta de quantas vezes o seu sorriso havia me ludibriado, fazendo com que eu quase saísse dos parâmetros da realidade. Nos intervalos de conversa com a mulher ao lado, brigávamos preguiçosamente como quem necessitava de alguma forma, fazer os corpos se encontrarem. Empurrões que se transformavam rapidamente em um abraço apertado e demorado. Era sempre assim, mas nunca passava disso. O veículo gigante e de aparência grotesca chega, e nós, juntamente com a mulher, entramos. Todos aqueles bancos azuis, a paisagem, o desconforto e a poeira no canto das janelas me faziam lembrar-me do ensino médio, e era fácil me dar conta do alívio que eu sentia de permanecermos amigas depois daqueles tempos... E depois de tantas complicações. Conversamos mais. Havia menos pausas. Músicas, compositores, artistas eram nossas pautas. Antes da nona ou décima parada, sobe um casal de corintianos bêbados, com bonés e casaco da torcida, um copo de cerveja na mão, foi impossível não rir. E toda àquela tensão de três ou quatro horas atrás já havia sido amenizada.
Descemos paralelamente ao pé de uma avenida e eu já sentia mais frio do que outrora. A menos de vinte metros do bar percebi que meu amigo não chegara, que a fobia de um novo constrangimento batera na porta e, assim, adentramos no bar. Não havia cadeiras ou mesas, o que me fez me esforçar mais do que eu queria no momento. O garçom prontamente nos reservou um lugar e sentamos no mezanino do estabelecimento. Estabelecimento no qual sempre me senti agradável. Havia um cheiro amadeirado devido à estrutura do ambiente. A música na maioria das vezes era dançante, embora o local fosse um tanto quanto pequeno. Depois de sentarmos, o silêncio apoquentador estabeleceu-se novamente diante de nós. E não só bastasse isso, mas logo que sentei minhas nádegas e olhei à minha frente, dei de cara com dezenas de pessoas bebericando suas cervejas importadas e casais românticos trocando carícias, beijos e risos soltos. Não acreditei em nada mais do que uma grande piada de mau gosto do destino. E eu podia senti-lo apontando o dedo na minha cara e rindo, como quem fosse um sádico apreciando a desgraça alheia. Peguei umas cervejas para nós enquanto aguardava meu amigo, que dizia estar atrasado e esperava inocentemente que um ônibus passasse para que ele pudesse chegar. Olhava no celular, me comunicava com ele e chamava outra amiga que morava nas redondezas pra matar saudade. Ela não poderia ir. Era perturbador. Vinte ou trinta minutos que pareceram uma eternidade, foi o tempo que demorou em que nosso amigo chegasse. Alívio. Os apresentei, conversamos e bebericamos nossa segunda cerveja. Pedi duas tequilas, que demorei quase uma hora para convencê-la a beber. Duas ou três cervejas após a tequila e eu encontrava-me no estado desnorteadamente alegre enquanto ela estava alterada, mas absolutamente normal, e ele nem um pouco atingido pelo álcool que ingeriu. Depois de toda a quebra de gelo e minha voz desnecessariamente alta competindo com a música, decidimos ficar na calçada em frente ao bar conversando de forma mais decente e compreensível. E eu, encostada num poste, não esperando nada daquela noite no meu consciente, me deparo com uma das suas mãos se apoiando em minha lombar, entrelaçando seus dedos nos meus. Não ficara rígida de nervoso ou coisa parecida. Embora alegre, ainda estivera sóbria. Em vez de enrijecer-me, tranqüilizei-me no toque das suas mãos nas minhas, que não tremiam de nervoso, mas repousavam firmemente uma na outra, como quem quisera segurar para nunca mais deixar sair dali. Nosso amigo, que bebericava sua nona ou décima latinha de cerveja, anunciou a ida ao banheiro. E agora não só uma, mas nossas duas mãos estavam entrelaças. Minha testa encontrou a dela.

- Eu juro que eu fico com você quando você estiver sóbria. – Oras, eu não estava bêbada. Também jurei.

Não disse nada mais no momento. Nosso parceiro de conversa havia voltado. Quatro e meia da manhã, decidimos ir embora. Sentamos em mais um dos bancos da noite para que resolvêssemos em que lugar esperaríamos o ônibus – que na ingenuidade dos nossos pensamentos, apareceria em menos de uma hora. Então nosso amigo sugeriu que pegássemos um táxi até a rodoviária, por questões de segurança. Ele nos acompanhou e, percebendo meu frio, fez questão de me esquentar. O carro encostou ao lado do terminal suavemente, de forma que quase não reparei a chegada, que pareceu mais demorada que o esperado. Ela desceu, dei algum dinheiro àquele que trouxe o equilíbrio à noite para ajudá-lo a pagar o táxi. Coloquei meus pés de forma desajeitada no solo externo e logo vi a mão dela estendida em minha direção, que segurei prontamente, tão firme que eu podia imaginá-la só minha ali. Subimos as escadas que davam acesso aos guichês. Dois guichês abertos, um policial, uma mulher, outras duas, no máximo três pessoas zanzando por ali. Estávamos em silêncio. Um silêncio que para mim era afável. Soltei da mão dela e caminhei à frente para o banco, sentei-me. Ela, em seguida, não hesitou em ficar em pé, à minha frente, apoiando-se e abraçando minha cabeça, enquanto a abraçava pela cintura e encostava sonolenta a cabeça em seu peito. Podia sentir todas as batidas descompassadas e aceleradas do seu coração, me avisando, de alguma forma, que aquilo era um bom sinal. E eu pude senti-la me afastando de sua cintura e levantando o meu queixo para que eu pudesse encontrar seus olhos. Encontrei os olhos, seus cachos que pareciam ter uma beleza imutável e pareciam impossíveis de serem bagunçados, até que ela encontrasse minha boca com todo o cuidado do mundo atingindo uma realidade sublime. Como eu podia ainda amá-la igual há quatro anos? Não igual. Mais, eu diria. Muito mais. Seus lábios saíram dos meus, passaram pelo meu queixo, meu nariz, meus olhos, minha testa. Desceram ao ouvido.

- Te amo. – Recebi a informação, completamente desnorteada.
- Eu também, te amo muito. – Disse repetidas vezes.

Não era como se importasse se alguém estava ali, presenciando isso. Eu esperei quatro anos, e esperei até o fim da noite, e foi a melhor coisa que me aconteceu em um tempo incalculável. Tudo havia sido incerto toda a noite, e mesmo assim propiciou para que àquele momento acontecesse, e eu queria eternizá-lo. O ônibus chega.

- Por mim, eu ficaria aqui amanhã, e terça, e quarta, e quinta e sexta-feira... – Me prendeu no abraço que parecia, e era, o melhor abraço do mundo.